Não esqueço. Como poderia esquecer?

Uma chamada para mim? Mas quem? -Não sei. É um senhor que pergunta se pode falar com a Dra Paula Pousinha. -Está bem. Passa-me a chamada, que eu atendo. -Estou. -Estou. É a Dra Paula? -Sim, sou. Com quem estou a falar? -Eu estou a ligar porque eu li o artigo da Dra. E gostava de saber como é que eu posso experimentar esse tratamento? -Desculpe não estou a perceber? Eu trabalho com animais, com ratos. Não fazemos ideia se teríamos os mesmos resultados em pessoas. -Mas Dra. eu vou morrer de qualquer maneira… tenho pouco tempo de vida…

Passaram alguns anos desde que recebi esta chamada. Não esqueci. Como poderia esquecer?… O tempo. Esse tempo. O tempo que o investigador contabiliza em anos. Esse tempo. O tempo que o doente não tem!

Nós, investigadores, vivemos rodeados por equipamentos sofisticados, caixas e caixinhas, pós e soluções… e nomes tantos, uns cheios de letras, outros que se apresentam por códigos numéricos… grafismos imperceptíveis à generalidade das pessoas. Sabemos que uma descoberta demora 2 a 3 anos a ser provada e publicada. Sabemos que cada uma das descobertas é normalmente um pequeno contributo para descobrir um tratamento eficaz para uma doença. Percebem o que isto quer dizer? Talvez seja melhor ilustrar com números. Neste momento estou a desenvolver um trabalho de investigação relativo à doença de Alzheimer. Nos últimos 30 anos, desde 1993, foram publicados 83.982 artigos de investigação científica relativos a esta doença, sendo que só no último ano (2012) foram publicados 7.864. Isto significa que no mundo existem, pelo menos, 7.864 equipas de investigadores, que procuram descobrir um tratamento eficaz para a doença de Alzheimer. Estes números são esmagadores! Mais esmagadores seriam se traduzidos nos biliões de euros gastos a nível mundial. A investigação biomédica é assim… é lenta. É muito lenta. É provável que o fruto do nosso trabalho não tenha uma aplicação prática para aqueles que hoje têm a doença. É a porra do tempo!

Hoje saí do laboratório contente com os meus resultados (contente com resultados significa sair aos saltos, como os putos quando ganham um brinquedo. Não existe idade para sentir este estado criança da descoberta). E foi quando cheguei ao silêncio do carro que me lembrei deste diálogo ao telefone…

-Mas Dra. eu vou morrer de qualquer maneira… tenho pouco tempo de vida…

Não esqueço. Como poderia esquecer?

13 responses to “Não esqueço. Como poderia esquecer?

  1. Numeros impressionantes. De certeza que o teu trabalho contribuirá para algo de muito positivo.

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  2. Também eu, também eu …

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  3. E o mesmo na minha area (cancro). Em actividades de public engagement quantas vezes me perguntam quando a nossa investigacao podera ser utilizada para tratar os doentes. Muitas vezes sao eles proprios que me fazem a pergunta (aqui incluio a minha, a recuperar de um cancro colorectal). E lenta, de facto, a investigacao biomedica. Mas nao desanimes 🙂

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  4. Oi Isy. Eu não desanimo com facilidade :D, espero que estejas a recuperar bem – as vezes o melhor é a ignorância – beijinhos e obrigada pelo teu comentário.

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  5. Não desanimem nunca! Porque por muito lenta que seja a investigação, vocês, investigadores, são a única esperança para os doentes. E se hoje já há cura para muitas doenças é graças ao vosso trabalho. Há vidas que ainda não conseguem salvar/melhorar mas quantas não há que já salvaram/melhoraram?
    Tu fazes um grande trabalho Paula e és um grande ser humano!

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  6. maria filomena silva pascoal

    Olá Paula
    o seu trabalho certamente irá contribuir para o avanço da ciência. se assim não fosse, haveria muito mais gente “sem tempo” do que há agora. Para além disso, só morremos quando não deixamos marca em ninguém … por isso, esse sr. continua vivo e a dar-lhe força para continuar o seu trabalho. obrigada por dar uma ajuda à saúde de todos nós. bjs

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    • Obrigada Maria, gostei muito da sua frase “só morremos quando não deixamos marca em ninguém …” – vou guardar 🙂 Foi esse sentimento que me fez sentir (muito) viva nos 10 anos em que leccionei.

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  7. Fantástico, o texto! Fantástica, a história! Uma realidade… e admiro todos(as) estes investigadores que trabalham a vida inteira à volta de microscópios e toda uma panóplia de instrumentos necessários para a sua árdua tarefa.
    Realmente, acho que é impossível esquecer tamanha frase, vinda de uma pessoa que, deduzo, já não esteja entre nós (espero estar enganado).

    Os números são assustadores!

    Beijinhos e um bem haja! 🙂

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    • Ola paranoias. Nessa altura estava a trabalhar numa doença neuromuscular. Chama-se esclerose lateral amiotrofica. é uma doença terrivel que afecta pessoas em idade activa (40-50 anos, por vezes mais cedo). Entre o diagnostico e a morte sao 5 anos, normalmente. As pessoas preservam a consciencia e é a parte de coordenaçao motora que começa a falhar. Primeiro os membros inferiores, depois a partes mais proximais, culminando na insuficiencia cardio-respiratoria. é absolutamente dramatico!
      Obrigada pela presença no agoradigoeu. Beijinhos

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      • Ah, sei que doença é essa, tenho ouvido falar. Deve ser terrível, imagino… 😦
        Dou imenso valor a essas pessoas que “perdem” anos de vida a tentar algo para travar estas doenças… de louvar.

        Beijinhos

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  8. Obrigada Judite, és tão querida! Tens razão no teu comentario. A ciencia tem permitido encontrar soluções para muitas doenças. Pensemos na diabetes, por exemplo. Ha 100 anos era uma doença fatal, hoje é uma doença perfeitamente controlada. E preciso não esquecer que nos anos 50 o cérebro era considerado, pelos neurologistas e psiquiatra,s como a black box. A epilepsia era, por essa altura a doença que mais interesse suscitava na comunidade cientifica, historicamente associada aos demonios e fantasmas de cada um. Não deixa de ser interessante o facto de ter sido devido a operaçoes para tratar epilepsia que se descobriu a parte do cerebro responsavel pelo processamento das memorias. Para mim é fascinante esta ideia de que as nossas memorias não passam de moleculas que “conversam entre elas” por afinidades quimicas. Sabemos hoje que a doença de Alzheimer é uma doença silenciosa. Quando os doentes manifestam os sintomas significa que ja ocorreram muitas alteraçoes no passado – parece que 30 anos antes. A comunidade cientifica esta à procura de biomarcadores, ou seja, assim como fazemos uma analise para o nivel de açucar do sangue, no caso da diabetes ou determinamos o nivel de colesterol, no caso de risco para AVC ou enfarte do miocardio, procuramos um indicador biologico que permita diagnosticar Alzheimer antes da sintomatologia associada. Resta saber se quando o médico nos disser que a analise esta alterada e que devemos tomar medicaçao aos 40 anos para uma doença que se manifesta aos 70, vamos aceitar tomar o medicamento! beijinhos e ate breve!

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  9. Deve ser emocionante trabalhar com algo que possa salvar ou melhorar a vida de milhares de pessoas. O problema é realmente o tempo. Bom post e boa continuação com as pesquisas.

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  10. Parabéns. Por ser investigadora e por trabalhar na procura do diagnóstico da doença de Alzheimer. Conheço bem a doença, muito bem. Convivi com ela muitos anos, directamente. Fui cuidadora. E a doença, em determinada altura torna-se quase pior para os cuidadores do que para o próprio doente. E preocupo-me, todos os dias, em identificá-la em mim própria, sem neuroses demasiadas, mas com atenções redobradas. Anseio que as minhas filhas não tenham de passar comigo aquilo que passei enquanto cuidei, muito bem, da minha mãe.

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