André Filipe Sucena é autor do blog ritualdohabitual – um dos meus blogs preferidos. Sobre si escreveu “A minha paixão é escrever ficção — criar mundos e personagens e relações complexas entre os dois — mas como o perfeccionista miserável que sou, é meu fado ser demasiado auto-crítico para escrever algo tão grande como um livro. Enquanto não amadureço nesse sentido, lá vou escrevendo disparates mirabolantes no campo da não-ficção, para manter o teclado quente.” Acompanho o ritualdohabitual desde o início do agoradigoeu. Tem uma escrita inteligente e depurada, textos que reflectem as suas idiossincrasias e que por isso os tornam tão seus. Os números do blog não são públicos, sei apenas que tem 537 seguidores.
O convite surgiu espontaneamente e de modo público, num comentário a um post. Ambos escrevemos sobre os termos que as pessoas escreviam no Google para serem reencaminhadas para os nossos blogs. Ele concluiu que só depravados liam o ritual do habitual. Pelo contrário, o agoradigoeu parece ser lido por pessoas de coração partido. Comentário puxa comentário para chegarmos à conclusão que poderiam existir alguns links entre depravados e corações partidos. Este a “4 mãos” foi um enorme desafio. O meu muito obrigada André.
A frase por escolhida foi de Marcel Proust
“Apenas amamos aquilo que não possuímos por completo.”
Ela (PP)
Possuir. Possuir. Ando às voltas com isto e não sei o que escrever. Epá tudo o que eu não quero é possuir uma pessoa, muito menos por completo! As pessoas não são coisas.
Há uma expressão curriqueira (a qual muita gente acha especial) que me eriça a franja (caso a tivesse). “Eu entreguei-me, por completo, à relação!”. Isto parece o almanaque das terapias de casal – assim a jeito de encomenda DHL – oferta smart box. Já repararam que à medida que ficamos mais velhos (e dizemos que ficamos mais exigentes) vamos racionalizando mais as emoções? Há um verdadeiro jogo do gato e do rato, de check list em punho: enviou sms a dizer miss you, telefonou à hora de almoço, não tem fotografias em bikini no facebook, está sempre disponível para falar comigo, responde a todas as perguntas sobre o passado, após análise detalhada do telefone não existem “coisas estranhas”, é vegetariana como eu, gosta de… e a lista vai continuando, dependendo do nível de exigência (ou burrice) de cada um. E não estranharão se aqui escrever que existem os chicos-espertos, aqueles que numa ginástica admirável analisam opções em várias frentes. E deve chegar um momento em que pensam: “Está no papo! – já me posso entregar à relação” (confesso que não sei bem o que isto quer dizer) – para depois perder o interesse…
Deixemo-nos de merdas. O que ninguém quer, é amar sem ser amado. E se há coisa que a idade traz é o medo. Sim, o medo. Aos 16 anos o amor é uma descoberta, sobretudo de nós próprios. Eu sabia lá se possuía ou não o moço. Eu gostava de fazer coisas com ele e sentia que era um sentimento recíproco. E é tudo! Passaram quase duas décadas (e não, não estou velha!). As experiências por que vamos passando tornam-nos mais cépticos e (umas quantas vezes) mais irónicos. A capacidade de amar vai-se perdendo (talvez não seja a capacidade de amar… talvez seja o acreditar no amor), como grãos de areia que queremos reter na palma da mão. Não é o desejado, é apenas o facto da realidade se tornar menos endeusada do que a ingenuidade tende a fazer parecer. O amor não deve ser, na minha opinião, uma relação de posse. Gosto de pensar no amor como uma relação em que os amantes têm a liberdade de se escolher um ao outro, por se quererem e admirarem, sobretudo nas suas individualidades.
Ele (André Filipe Sucena)
O desejo provoca sofrimento, todos desejam algo, logo a vida é sofrimento. A única maneira de não sofrer seria o cessar do desejar.
O sofrimento é inevitável. Logo, sofrer torna-se tão opcional como o gostar, ou não, de respirar. Basta aceitar o sofrimento como outra qualquer reacção química de um cérebro saudável e não como um defeito de carácter pessoal. Ao classificar o sofrimento como algo mau não o estamos, de todo, a aceitar, apesar de ser evidente é que esta dinâmica desejo-sofrimento que é responsável pela civilização como a conhecemos hoje.
Consideremos os nossos antepassados de há umas boas décadas de milénio atrás. Durante o dia, talvez fossem inimigos, rivais, concorrentes. No entanto, durante a noite, enquanto jaziam cansados à volta do fogo e partilhavam estórias, algo de humano emergia. Imagine agora que é um desses homens-macaco – acha mesmo que iria sentir qualquer empatia por outro homem-macaco se o género de coisa que ele guinchasse fosse: “Ahah, matei três gazelas hoje e ainda fiz o amor australopiteco com quatro mulheres-macaca e um javali”? Claro que não. Como protótipo de humano com o sangue quente que seria neste cenário, o mais provável seria pegar num pedregulho e esmagar o crânio do sacana enquanto este dormia, urinando-lhe de seguida para cima do que restasse da sua massa cinzenta, enquanto batia com as mãos no peito.
No entanto, se esse mesmo homem-macaco lhe revelasse frustrações que, por acaso, fossem semelhantes às suas, tal provocaria uma sensação estranha e doce no seu diafragma. A compreensão da dor do seu semelhante. O seu cérebro primitivo exclamaria algo do género “Jesus Símio, este sujeito é tal e qual como eu,” e ficariam os dois a olhar para as estrelas, de uma forma estritamente heterossexual, contemplando se aqueles pontos de luz no meio do nada não seriam também outros homens-macaco reunidos à volta das suas respectivas fogueiras, a terem exactamente a mesma epifania. Nasceria então um elo estranho entre vocês, que só viria a ser definido no tempo dos filósofos – a amizade.
O desejo-sofrimento foi a maneira que encontrámos, enquanto espécie, de aceitar os outros como nossos iguais. O desejar, em si, é vazio. As sensações de orgulho, satisfação e alegria que possam surgir no momento em que um desejo é alcançado logo dão lugar a um sabor amargo na boca e a um cru “…e agora?”
Procedemos então à busca de um outro melhor desejo.
Um desejo que nos faça sofrer durante tempo indeterminado pela simples razão de que é isso que é o melhor para nós. O nosso inconsciente sabe bem que é o sofrimento que nos torna em seres humanos aptos a simpatizar com outras almas miseráveis.
Um desejo tão caracteristicamente específico que pode ser metaforizado como a cenoura pendurada a alguns centímetros à frente da mula – o suficientemente longe para o bicho nunca lhe conseguir chegar, o suficientemente perto para não o deixar ver mais nada à frente – persuadindo-a a tentar dar sempre mais um passo, alheia ao absurdo que a rodeia. É um desejo que aparenta ser alcançável não o sendo, provocando um conflito interior entre a esperança ilógica e a racionalidade.
Talvez seja essa a razão porque a esperança estava tão bem guardada no fundo da caixa de Pandora – numa certa perspectiva, talvez seja mesmo o pior dos males. É a esperança, afinal que nos faz acreditar que, quanto mais tempo ou com quanta mais “força” desejarmos algo, mais hipóteses teremos de o alcançar. É a esperança que nos faz crer que, se trabalharmos uma vida inteira, seremos, eventualmente, e nem sabemos bem como, felizes. É a esperança que nos leva a pôr cordas aos pescoços, convencendo-nos que iremos satisfazer o paradoxal desejo de acabar com o sofrimento. É a esperança que nos faz dar o milionésimo passo em direcção à maldita cenoura.
Mas não, a esperança é também neutra. Tanto amplifica o sofrimento sempre que a realidade se torna menos endeusada do que a ingenuidade tende a fazer parecer, como é solidificada por este sempre que o sofrimento provoque uma reorganização mental que leve a uma construção de melhores fundações para a nossa fé.
A relação esperança-desejo-sofrimento é simbiótica. Sem um conceito, deixam de existir os outros dois. Se nós amamos aquilo que não podemos alguma vez possuir, é porque é essa loucura que mantém a roda bem oleada. No final de contas, é apenas este suado ménage à trois que nos dá algo para nos entretermos enquanto aguardamos na fila de espera para o vazio.

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