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Sente a tua mão… na outra mão.

Fecha os olhos. Está escuro, mas não importa. Fecha os olhos. Ouve o silêncio. Mesmo que exista ruído, ouve o silêncio. Porque há sempre silêncio. Mais não seja dentro de ti. Fecha a tua mão. Sente como está vazia. Abre-a. Procura. Procura se tens uma mão por perto. Uma mão que não seja a tua outra mão. Encontraste. Sente. Procura os dedos com os teus dedos. Entrelaça-os. Sente. É quente. Sente. Pensa em nada. Sente. Mantém os olhos fechados. Não tenhas medo. Sente.

É íntimo. Confia.

Não, a Josefina Ludovina não é uma mulher estranha. É só uma mulher…

Josefina Ludovina é uma mulher robusta, de coxas largas e nádegas que lhe preenchem as saias. Os peitos volumosos, que com ciência mostra em amplos decotes, combinam com o sorriso rasgado e os olhos azeitona, cujo brilho a idade não roubou. É uma mulher vivida, mãe de filhos e mãos moldadas pelo trabalho. Os ombros raramente estão caídos e os pés, os pés prefere-os descalços.
Josefina Ludovina tem uma janela. Não, não é a janela do terceiro andar ! Ela é uma mulher moderna: Tem facebook ! E tem muitos amigos no facebook! O Ambrósio Francisco é um deles. Sempre que a Josefina Ludovina publica alguma coisita , o Ambrósio chiquinho (os amigos do facebook são para ser tratados com carinho) coloca logo um like ! Mesmo que seja « hoje acordei com diarreia », o chiquinho faz « like » ! Pobre Josefina Ludovina, ela a necessitar de umas ervas para as maleitas do ventre e tudo o que recebe são uns sorrisos virtuais! Experimentou publicar fotografias ! Cedo percebeu que além de « likes » também recebe mensagens. « gostaria tanto… », « seria tão … » e tantas outras formas do futuro do pretérito condicionado ! Pobre Josefina Ludovina. As comichões não lhe dão treguas! estes tempos verbais das impossibilidades, fazem-lhe aumentar a urticária!
Josefina Ludovina não tem apenas facebook. Ela tem também telefone. Não, não é um telefone de brincar! Acreditem no que vos digo. Josefina Ludovina é uma mulher moderna. Ora o Feliciano Crisóstomo gosta de lhe perguntar todos os dias « o que é que estás a fazer ? » ao que Josefina Ludovina responde « a pensar em ti ». Olha-me este agora, não queria ele saber outra coisa, diz entre dentes! Mas se há coisa que Josefina Ludovina sabe é que os Felicianos Crisóstomos desta vida gostam sempre que pensem neles. Isso acalma-os, deixa-os contentes!…

Hoje a Josefina Ludovina estava mesmo com vontade de passear as vistas e acalmar as quenturas. Os Ambrósios Franciscos estao disponiveis para colocar like e os Felicianos Crisóstomos para (não) saber como foi. Pobre Josefina Ludovina… ainda está por conhecer o Joaquim Modesto, aquele que lhe vai dar a mão, não se importando de ver filmes a preto e branco.

Não, a Josefina Ludovina não é uma mulher estranha. é só uma mulher…

Rita Valente, outro apelido não lhe faria semelhante justiça.

Rita Valente, outro apelido não lhe faria semelhante justiça. Nasceu antes da guerra, mas é provável que dela pouco tenha ouvido falar. À aldeia da Beira Baixa, não chegava o peixe nem as bananas, quanto mais as notícias de Salazar e do mundo. O infortúnio e a pobreza era o dado adquirido para todos os que não tinham terra. Os homens e as mulheres, devotos a Deus e às feitiçarias populares, acordavam com o objectivo único de ter alimento para os seus, para aquele dia.

Mãe de 4 filhos vivos e outros tantos que não vingaram. Alta como poucas mulheres da sua época. O corpo seco. Aos ossos acrescentava a pele enrugada pelo sol. Magra, também pela fome (porque o desgosto não tem calorias). As migas enchiam-lhe o prato, mas não o bucho. As mãos. Ásperas no toque, deformadas pela dureza dos campos e pelo rigor das estações. A vida secou-lhe as lágrimas e silenciou-lhe as palavras. O desgosto. O desgosto de ver partir os filhos, porque na aldeia só se adivinhava a fome e a febre. O desgosto de sentir a morte no ventre. O desgosto de sentir a morte nos braços. E lembrava-se muitas vezes daquele dia. Aquele dia em que a febre do menino não baixava. Caminhou até ao médico com o menino ao colo. Caminhou 9 Km. O médico deu-lhe a notícia:

-Rita, o menino vai morrer. Leve-o. Leve-o de volta. Porque se o menino morrer aqui, teremos de lhe fazer o funeral.

E Rita Valente voltou à aldeia. Com o menino nos braços. As lágrimas não lhe molhavam o rosto. Há vidas em que a esperança é acordar, porque da miséria pouco se espera. Que mais a vida lhe podia trazer? A caminhar com o menino de 3 anos ao colo. À espera que o coração deixe de bater. E o menino deixou de respirar. E ela continuou o seu caminho. Com o filho morto, no colo. Sem dinheiro para o funeral. Enterrou-o. E com ele enterrou também um pouco de si.

Casou jovem, de xaile negro, como na aldeia era tradição. Casou com um homem mais baixo, como seriam, provavelmente, todos os rapazes da aldeia. Há mulheres a quem a força e determinação não é questionada. E Rita Valente era uma dessas mulheres. Mãe de 3 filhos rapazes endiabrados (Joaquim, Zé e Manel) e de uma menina (Maria), que lhe fazia companhia. Mas os filhos mais velhos cedo partiram e viu-se a braços com o mais endiabrado, quando já a vida lhe tinha dado tanto de desgosto quanto tirado de paciência. E o Manel, que aparou com as mãos, num parto que por ausência da parteira, quis fazer sozinha, era perito em travessuras. Sabia-as bem e, por isso, tardava em voltar para casa. E Rita Valente lá ía, de vara em punho. Corria a aldeia,  se preciso fosse, para o encontrar. E foi assim. Até que também o Manel cresceu. E também ele partiu para Lisboa.

Rita Valente continuou na aldeia. A casa enchia-se no Natal, na Páscoa e em Agosto. Os escudos que amealhava no saiote da saia permitiram ampliar a casa e fazer uma casa de banho. Um quarto para cada um dos filhos. Deixou para si o mais pequeno dos quartos. Aquele que nem porta tinha. E escolheu o segundo degrau da escada para a cozinha, como o seu canto.

Rita Valente é(foi) a minha avó paterna. Morreu quando eu tinha 13 anos. Nem na sua morte vergou. A vizinha foi quem deu o alarme. Da tosse surgia sangue. Os filhos foram buscá-la. Morreu poucos dias depois, no hospital. Há pessoas que nos marcam. Pela força com que nos inspiram. Há uns tempos escrevi sobre esta casa na aldeia. O meu pai é o mais novo dos 4 filhos, o Manel. E hoje, a minha tia (Maria) é quem se senta no 2º degrau da escada para a cozinha. Escrevi este texto porque li uma entrevista em que o entrevistado dizia que a situação de Portugal é tão grave que se verificará um retrocesso. “Portugal voltará à realidade dos anos 50”, dizia. E eu não sei de que Portugal dos anos 50 tem memoria o entrevistado (porque as diferenças sociais eram, nessa altura, ainda mais marcadas do que são hoje). Espero bem que não seja o Portugal dos anos 50 que tenho inscrito nos meus genes. Porque esse é um Portugal de fome e de sobrevivência. É bom que tenhamos isto bem presente!

Em estilo de romance abreviado

Hoje apeteceu-me escrever de uma forma diferente. Apeteceu-me escrever em estilo de romance. Não é que eu saiba. Há quem diga que tenho jeito com as palavras. Há quem diga que não sei escrever. Mas tenho desculpa. Sou cientista. E os cientistas são dados à razão. As emoções ficam em casa. Mas é em casa que escrevo. Por isso hoje (não se assustem, isto não me acontece com regularidade) apeteceu-me escrever com emoção. Costumamos dizer que da nossa vida já sabemos. Por isso é tão interessante a vida dos outros. O que eu acho mesmo interessante é a vida dos outros que eu invento (sim porque um cientista tem de inventar (descobrir – lá está o concreto a tirar a piada) alguma coisa.

Deixo-vos então este romance abreviado (o antes e o depois é para cada um de vós, que o lê, imaginar).

E comungando do prazer do silêncio aproximei-me e encostei, ao dele, o meu corpo.

A tarde solarenga convidava a passeio sem destino por Lisboa antiga. A luz enfraquecida pela hora, ganhava em cor, o que perdia em calor. Uma luz alaranjada que se estendia como uma cortina. O casario envelhecido transpirava cor e os rostos, daqueles que por mim passavam, sorriam com o olhar. E aqueceu-me a alma, mas não o corpo. E caminhei a passos rápidos. Aqueles que temos com a energia de quem quer descobrir as ruas, os recantos, os muros ou as varandas sobre os telhados. E aí parava. A máquina pendurada no braço exigia atenção e eu sem vontade de a ligar. Mas aquele momento era meu. E eu queria que fosse íntimo e intransmissível. Aquele que fotografei com os meus olhos e guardei na memória. E como é imaginado não é concreto. A fotografia perfeita. Aquela que não cheguei a tirar!

Cedi à tentação do azul intenso que espreitava no horizonte de algumas ruas. Caminhei em direcção ao Tejo. Cheguei à margem. Sentei-me no chão, de joelhos encostados ao peito. Ali fiquei. O ruído das vozes, dos carros,… pareciam-me tão distantes. Sem que o pudesse adivinhar, ouvi o meu nome. Ouvi uma e outra vez.

-Leonor!

Seria para mim? Pensei. E a voz aproximou-se. Aquela voz!… Não podia ser! Não fazia sentido. Nem naquele tempo, muito menos naquele espaço. E fiquei perdida na interrogação de uma lembrança. A voz repetiu-se. Agora mais física. Agora com cheiro… e tão assustadoramente real. Senti o coração disparar. Levantei a cabeça e vi-o.

-Francisco! Foi apenas o que consegui murmurar. Levantei-me. E fiquei ali. Imóvel. Incrédula.

Terão sido segundos, minutos,… que os nossos olhares se invadiram? Um misto de interrogação e afirmação. Senti a tua falta! Por onde andaste? Quero-te! É bom ver-te! Sentes o que eu estou a sentir? Será que ainda me acha atraente? E nos atropelos do que se quer dizer, mas se tem medo, nada disse. E ficámos assim. Frente a frente!

Ele, sem desviar o olhar, colocou a mão no meu pescoço e com o polegar tocou levemente os meus lábios, num gesto lento e sem palavras audíveis. E eu senti. Senti e quis sentir… E comungando do prazer do silêncio aproximei-me e encostei, ao dele, o meu corpo. E ele sentiu,… Sentiu os meus lábios tocarem os dele, num beijo sem pressa, sem regra e sem depois. Fechei os olhos e viajei nas sensações que o corpo encerra, envolvida num abraço sem escala, no toque de umas mãos que me percorrem sem medos ou hesitações.

Adivinhei  uma partilha maior, em outro local, por certo. Mais intimo, mas ainda assim, tão livre quanto o mar em que o Tejo deixa de o ser.