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Elena Ferrante – a Amiga genial

Tenho andado entusiasmada com a tetralogia de Elena Ferrante. Estou no terceiro livro (a idade intermédia).

Trata-se de uma história de vida(s) que começa na infância, na Nápoles do pós-segunda guerra. Duas amigas de um bairro pobre. A filha do sapateiro e a filha do porteiro. Uma inteligente. Outra com dificuldades. Uma a quem os pais não deixaram estudar. Outra a quem os pais autorizaram sonhar. Livros que atravessam 50 anos de vida. Por vezes pensamos que a história vai ser uma, dez paginas depois o fim adivinha-se outro. Mas como na nossa vida, neste(s) livro(s) a incerteza é a constante que nos faz sentir vivos e nos tenta a virar a página.

Em Portugal tem o título de “a amiga genial”. Uma das minhas surpresas literárias deste verão. 

Bom fim de semana

“Rien de grave” de Justine Lévy

Continuo a ler em francês. No formato “livro de bolso”. E estou absolutamente viciada. “Rien de grave” foi o meu último livro. 

  

Reencontrei-me em Louise. Ou nas palavras de Lévy.

  
“Amar não quer dizer que nos parecemos. Amar não quer dizer sermos iguais, comportarmo-nos como gémeos, que acreditamos inseperáveis. Amar é não ter medo de se separar ou de deixar de amar. Amar é aceitar a queda, sozinho, e de se levantar, sozinho. Eu não sabia o que é amar, tenho a impressão de que hoje sei um pouco mais.”

 
   
E eu estou farta, ao mesmo tempo, de ter atenção. Estou farta da miopia, da surdez, do mutismo. Mas estou farta, também, de estar fechada em mim mesma com todos estes sentimentos que fiz prescrever, todas estas palavras que eu nunca mais quero dizer, antes morrer que dizê-las, digo a mim própria, o ferro-velho de palavras usadas que outrora serviram, é como o meu coração, e o meu corpo, eles também usados de ocasião, eles também amaram, sofreram e depois? Eu não me vou reencarnar por isso, nem transformar-me na essência de uma outra, elas estão aqui, estas palavras, de qualquer forma elas estão na minha cabeça, na minha garganta, Pablo bebe-as quando me beija, ele compreende-as mesmo que eu as detenha dentro de mim, acreditas no quê, idiota? Acreditas mesmo que eu não as ouço, essas palavras de amor que tu não me dizes? Claro que é ele que tem razão. Sinto vergonha, e sinto vergonha de ter vergonha. Tenho vergonha de as pensar, as palavras, e ainda mais vergonha por não conseguir dizê-las. Estou farta deste frio em mim. Farta de nunca sentir o quente ou a dor. Farta de passar ao lado da vida, da felicidade, da tristeza, das pessoas, dos desafios, da morre. Merda para a falsa vida. Merda para o negro, o silêncio, a anestesia, os gatos, os jeans. Ele tem razão, Pablo. É preciso parar de não viver. Parar de não chorar. Parar a retenção de lágrimas, assim vou ficar com celulite na cara, à força. Parar de ter medo de estar viva. 

(…)

Parar o amor sublime, os amantes belos e nobres e perfeitos. De manhã temos má cara, temos mau hálito, é assim, é preciso aceitar, é assim a vida.

Bom ano 2016!

New year starts. Estou na Côte. Começo o dia sobre rodas. Como no ano passado. Hoje o dia está cinzento. O mar está sereno e os olhos viram-se para as montanhas. Espera-se neve nos Alpes este fim de semana. A montanha é um vício. Tal como o é o mar e a brisa que dele parte. Como se nos dissesse Bom dia…

Delphine de Vigan  é a minha mais recente descoberta em matéria de autores franceses. Começo o ano com as suas palavras. É comum dizer-se que tudo o que queremos expressar já foi escrito por alguém, de uma forma mais bonita, mais profunda… Delphine, em “les heures souterraines” incomoda, perturba… Coloca em palavras a realidade deste ritmo frenético em que vivemos. Adjectiva vidas tão cheias de coisa nenhuma.

Ontem perguntaram-me por que não arrisco escrever um livro. “Porque a cada vez que leio um livro sinto que nunca conseguirei escrever assim”! Na verdade tenho medo. Tenho medo de não ser capaz. Tenho medo de ser capaz e me tornar prisioneira dos personagens. E depois órfã. Tenho medo de lhes dar vida, porque há em cada um deles uma parte de mim, do que vi, do que li, do que vivi…

Ter a vida que escolhemos e não aquela que nos sobra torna-nos, também, vítimas de um excesso de controle. Sobre nós próprios. Onde o desafio é sermos capazes de o perder. Esse é, porventura, o meu maior desafio.

Bom ano 2016.

Obrigada por estarem desse lado.

Agnès Martin-Lugand. As minhas últimas viagens. Na forma de livro.

De regresso à Côte d´Azur. Depois duma semana que passou a correr… Uma semana de filha, de bébés, de família. Uma semana de preparação para o novo ano escolar que começa. Uma semana em que substituí os artigos científicos por romances.  Agnès Martin-Lugand fez-me viajar. Emociou-me. Viciou-me. Neste tempo de guerra, desigualdade e êxodo humano… senti necessidade de mergulhar em estórias sem época, como são todas as estórias de amor. Estórias escritas por uma mulher. Vividas por mulheres inventadas (ou talvez não).

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“Les gens heureux lisent et boivent du café” (2013) foi o primeiro livro que li. (Existe tradução em português). Trata-se da estória de Diane, uma mulher que, para se reconstruir após a morte da filha e marido, parte para a Irlanda. Um livro que me fez (re)visitar um local onde nunca fui, mas que há muito quero ir: Irlanda. Desde o filme “Leap Year” (sobretudo a zona em que são filmadas as últimas cenas) que tenho esta viagem na agenda. Mas como diz uma amiga. “Há viagens em que o mais importante não é o destino, mas a companhia” (T. fazes-me falta!). Este é um dos casos. E a companhia ainda não aconteceu…

“La vie est facile ne t´inquiète pas” (2015) é a continuação do “Les gens heureux lisent et boivent du café”. Após um ano na Irlanda Diane regressa a Paris. Regressa ao seu café literário no Marais, onde na porta tem escrito “As pessoas felizes lêem e bebem café”. Um romance entre as margens do Sena, o Marais e Montmartre. Que me faz (quase) ter vontade de viver uns tempos em Paris.

“Entre mes mains le bonheur se faufile” (2014) é um romance diferente. Iris não é uma mulher que se reconstroi como Diane. É, na verdade, uma mulher que se descobre e afirma. Uma mulher a quem os pais roubaram o sonho de vida, quando ainda tinha 18 anos. Que a fizeram julgar incapaz. Uma mulher que, perdido o sonho, correspondeu às expectativas sociais. Casou com o médico da vila. Viveu na sua sombra. Até ao dia em que percebeu que poderia ser diferente. Descobriu-se mulher. Descobriu-se feminina e atraente. Descobriu-se determinada e capaz. Inspirou-se naquela que seria a sua mentora e simultaneamente castradora, Marthe. E Gabriel…

Amanhã regresso aos artigos científicos. Mesmo que ainda esteja sob o efeito dos romances que li. Às vezes sinto-me orfã dos personagens. Sinto-me orfã da Diane e da Iris. E da Juliette de “Moment d´un couple“. E de Irene de “De amor e de Sombra“. E de tantas outras mulheres que fazem parte de mim…

Boa semana!

 

“Moment d´un couple” de Nelly Alard.

É pena que Nelly Alard não tenha (ainda) os seus livros (“Le crieur de nuit” – 2010 – e “Moment d´un couple” – 2013 -) traduzidos em português.

O meu critério para escolher os livros de autores franceses, é mais ou menos o mesmo que aplico à escolha dos vinhos. Escolho livros premiados. “Moment d´un couple” apresentou-se de capa sugestiva, titulo comum e com a indicação “Prix Interallité 2013”. Livro escolhido. Sem arrependimento. Vou tentar fazer a tradução de algumas passagens, para que possam compreender por que motivo o li num trago.

O romance tem como cenário a cidade de Paris, no ano de 2003. Um casal de trinta e muitos anos. Dois filhos pequenos. Ela engenheira. Ele jornalista.

O livro começa com Olivier, o marido, que telefona a Juliette, sua esposa. É feriado. Ela está com os filhos num parque de Paris.

“Onde estás? – No Buttes – Estás sozinha? – Não, estou com a Flo e com os miúdos. – Podes distanciar-te um pouco, tenho uma coisa para te dizer.

O sorriso de Joliette desapareceu. Faz um sinal a Flo, levanta-se e volta a sentar-se na relva, a dez metros de distância. Do outro lado da linha Olivier parece aflito.

O que é que se passa? pergunta-lhe ela. Antes de ouvir a sua resposta, ela sente uma bola no estômago. A ideia de que Maria estivesse morta.

Bem. Tenho uma estória com uma mulher. É uma eleitora socialista. Dura há três semanas e agora ela quer que eu te deixe. É por isso que te estou a ligar. Disse-lhe que hoje ía ao cinema contigo e ela começou a ter uma crise de epilépsia. Atirou com o telefone ao chão, grita… eu não sei o que é que ela tem, nem sei o que fazer. Tenho de estar com ela. Não posso ir ao cinema. Compreendes?”

A partir daqui o livro é uma verdadeira viagem de nervos. Entre os personagens. Mas também entre o leitor e os personagens.  Dei comigo incapaz de compreender Juliette… e capaz de espancar Olivier. E uma “outra”, a V, caprichosa, irritante… como todas as “outras” que não têm nada a perder…

O drama continua…

“Como é que está a epiléptica? pergunta-lhe ela.

Olivier muda de expressão. -Não tem piada! É mesmo trágico!

– Ah, diz ela.

– Afinal ela é mesmo doente. Eu não sabia. Acabei de saber. Um dos seus amigos apareceu e contou-me.

-Pára. Estou-me nas tintas para ela. Só quero saber duas coisas: Um, queres deixar-nos? A mim e aos miúdos? 

-Não. Responde-lhe ele, rapidamente. -Não é isso que eu quero.

Ela não tenta disfarçar o seu alívio. Continua. -Bom, dois. Estás apaixonado por ela?

Ele hesita. Diz qualquer coisa que não é sim, nem não. Mas que termina por: É forte, sim.

– Merda, merda, merda! Suspira Juliette.”

Juliette que de início não quer saber nada, mas que depois quer saber tudo. Olivier que se faz de vítima. Incapaz de decidir o que quer. Incapaz de sair com a mesma incapacidade de ficar. V. que faz da vida dos dois um verdadeiro inferno.

“-Tu querias continuar esta estória e ao mesmo tempo ficar comigo? Não estou a dizer que sou capaz de o aceitar e à primeira vista parece que ela também não. mas se fosse possível. É isso que no fundo tu gostarias que acontecesse?

-Não. Antes, quando tu não sabias, sem dúvida que sim. Mas agora não!”

 

V procura o confronto. Uma noite encontram-se os três. Na casa dos dois.

– Há três semanas que adoptei a estratégia de sacos de areia mas não resulta. Terminar não é possível. Não faz sentido. As palavras têm um significado, querem dizer alguma coisa.

– Eu nunca te disse que queria deixar a minha mulher. Responde Olivier.

– Não. Não estamos a falar dela. Nós nunca falamos dela. Mas tu lembras-te quando nós falamos do que era ter uma aventura, que tu me disseste que entre nós não era apenas uma aventura?

– Talvez. Pode ser que eu tenha dito. É possível.

– E as últimas vezes que nos encontrámos. Tu tinhas ar contente.

– Sim.

Juliette fuma. 

– Então porquê? Pergunta-lhe V.

– Porque… responde Olivier.

– Porque o quê?

– Porque eu não me quero divorciar.

– E porque é que tu não te queres divorciar? insiste ela.

– Porque eu não quero esta tristeza. Porque quando acordo de manhã e olho para a Juliette não sinto desagrado como eu acho que devemos sentir quando queremos deixar alguém.

– Ainda me amas?

– Acabou.

O livro não tem propriamente um fim. Como na vida só há fim na morte… Há, no entanto, duas passagens que me apaziguaram com os personagens. Que me fizeram sentir que mesmo sendo diferente, todos os sentires são pertinentes.

Ele lançou-se nesta aventura com Vitória convencido de que falaria com a sua mulher e que ela o perdoaria. Como é que essa certeza poderia existir com a impressão de que Juliette o já não amava. Isso ele não sabia. Mas uma noite, ao entrar em casa, pouco tempo depois de lhe ter contado a sua aventura, Juliette olhou para ele sem dizer nada. Nos seus olhos ele viu duas coisas: a primeira, que Juliette o continuava a amar. E a segunda, que ela poderia deixar de o amar se ele a continuasse a trair. E sentiu-se morrer quando teve este pensamento. Desde esse dia a sua decisão estava tomada. Tudo o resto foi uma infelicidade. Uma tentativa desastrosa de sair desta história sem fazer muito mal a Vitória. Neste momento a única coisa que o preocupava era: não perder Juliette. Sem ela e sem os seus filhos. Sem a família. Ele não teria absolutamente nada.

Juliette saiu para a rua do Château-des-Rentiers perturbada. Durante os últimos meses ela tinha tido este sentimento inúmeras vezes.Ninguém compreendia a sua reacção à traição de Olivier, às suas mentiras, às agressões de V. O seu comportamento era incompreensível. Ela sentia-se humilhada pela compaixão dos outros. Sentiu as lágrimas humedecerem-lhe os olhos e, simultaneamente, a revolta a invadi-la. Porque as pessoas têm uma ideia muito precisa de como uma mulher traída se deve comportar, do que pode ou não pode suportar, do que ela pode ou não pode aceitar, e o consenso era, em nome da dignidade das mulheres, em nome da sua integridade, que ela tem o dever se mostrar intransigente, que deve preferir a solidão gloriosa a um amor imperfeito. Juliette , ela, lutou pelo seu direito ao seu amor imperfeito, ao seu amor conjugal, ao seu amor de merda como um dia disse V. Mesmo sabendo que na escala dos amores o seu se situava em baixo, mesmo em baixo, quase rente ao chão.”

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