É pena que Nelly Alard não tenha (ainda) os seus livros (“Le crieur de nuit” – 2010 – e “Moment d´un couple” – 2013 -) traduzidos em português.
O meu critério para escolher os livros de autores franceses, é mais ou menos o mesmo que aplico à escolha dos vinhos. Escolho livros premiados. “Moment d´un couple” apresentou-se de capa sugestiva, titulo comum e com a indicação “Prix Interallité 2013”. Livro escolhido. Sem arrependimento. Vou tentar fazer a tradução de algumas passagens, para que possam compreender por que motivo o li num trago.
O romance tem como cenário a cidade de Paris, no ano de 2003. Um casal de trinta e muitos anos. Dois filhos pequenos. Ela engenheira. Ele jornalista.
O livro começa com Olivier, o marido, que telefona a Juliette, sua esposa. É feriado. Ela está com os filhos num parque de Paris.
“Onde estás? – No Buttes – Estás sozinha? – Não, estou com a Flo e com os miúdos. – Podes distanciar-te um pouco, tenho uma coisa para te dizer.
O sorriso de Joliette desapareceu. Faz um sinal a Flo, levanta-se e volta a sentar-se na relva, a dez metros de distância. Do outro lado da linha Olivier parece aflito.
O que é que se passa? pergunta-lhe ela. Antes de ouvir a sua resposta, ela sente uma bola no estômago. A ideia de que Maria estivesse morta.
Bem. Tenho uma estória com uma mulher. É uma eleitora socialista. Dura há três semanas e agora ela quer que eu te deixe. É por isso que te estou a ligar. Disse-lhe que hoje ía ao cinema contigo e ela começou a ter uma crise de epilépsia. Atirou com o telefone ao chão, grita… eu não sei o que é que ela tem, nem sei o que fazer. Tenho de estar com ela. Não posso ir ao cinema. Compreendes?”
A partir daqui o livro é uma verdadeira viagem de nervos. Entre os personagens. Mas também entre o leitor e os personagens. Dei comigo incapaz de compreender Juliette… e capaz de espancar Olivier. E uma “outra”, a V, caprichosa, irritante… como todas as “outras” que não têm nada a perder…
O drama continua…
“Como é que está a epiléptica? pergunta-lhe ela.
Olivier muda de expressão. -Não tem piada! É mesmo trágico!
– Ah, diz ela.
– Afinal ela é mesmo doente. Eu não sabia. Acabei de saber. Um dos seus amigos apareceu e contou-me.
-Pára. Estou-me nas tintas para ela. Só quero saber duas coisas: Um, queres deixar-nos? A mim e aos miúdos?
-Não. Responde-lhe ele, rapidamente. -Não é isso que eu quero.
Ela não tenta disfarçar o seu alívio. Continua. -Bom, dois. Estás apaixonado por ela?
Ele hesita. Diz qualquer coisa que não é sim, nem não. Mas que termina por: É forte, sim.
– Merda, merda, merda! Suspira Juliette.”
Juliette que de início não quer saber nada, mas que depois quer saber tudo. Olivier que se faz de vítima. Incapaz de decidir o que quer. Incapaz de sair com a mesma incapacidade de ficar. V. que faz da vida dos dois um verdadeiro inferno.
“-Tu querias continuar esta estória e ao mesmo tempo ficar comigo? Não estou a dizer que sou capaz de o aceitar e à primeira vista parece que ela também não. mas se fosse possível. É isso que no fundo tu gostarias que acontecesse?
-Não. Antes, quando tu não sabias, sem dúvida que sim. Mas agora não!”
V procura o confronto. Uma noite encontram-se os três. Na casa dos dois.
“– Há três semanas que adoptei a estratégia de sacos de areia mas não resulta. Terminar não é possível. Não faz sentido. As palavras têm um significado, querem dizer alguma coisa.
– Eu nunca te disse que queria deixar a minha mulher. Responde Olivier.
– Não. Não estamos a falar dela. Nós nunca falamos dela. Mas tu lembras-te quando nós falamos do que era ter uma aventura, que tu me disseste que entre nós não era apenas uma aventura?
– Talvez. Pode ser que eu tenha dito. É possível.
– E as últimas vezes que nos encontrámos. Tu tinhas ar contente.
– Sim.
Juliette fuma.
– Então porquê? Pergunta-lhe V.
– Porque… responde Olivier.
– Porque o quê?
– Porque eu não me quero divorciar.
– E porque é que tu não te queres divorciar? insiste ela.
– Porque eu não quero esta tristeza. Porque quando acordo de manhã e olho para a Juliette não sinto desagrado como eu acho que devemos sentir quando queremos deixar alguém.
– Ainda me amas?
– Acabou.”
O livro não tem propriamente um fim. Como na vida só há fim na morte… Há, no entanto, duas passagens que me apaziguaram com os personagens. Que me fizeram sentir que mesmo sendo diferente, todos os sentires são pertinentes.
“Ele lançou-se nesta aventura com Vitória convencido de que falaria com a sua mulher e que ela o perdoaria. Como é que essa certeza poderia existir com a impressão de que Juliette o já não amava. Isso ele não sabia. Mas uma noite, ao entrar em casa, pouco tempo depois de lhe ter contado a sua aventura, Juliette olhou para ele sem dizer nada. Nos seus olhos ele viu duas coisas: a primeira, que Juliette o continuava a amar. E a segunda, que ela poderia deixar de o amar se ele a continuasse a trair. E sentiu-se morrer quando teve este pensamento. Desde esse dia a sua decisão estava tomada. Tudo o resto foi uma infelicidade. Uma tentativa desastrosa de sair desta história sem fazer muito mal a Vitória. Neste momento a única coisa que o preocupava era: não perder Juliette. Sem ela e sem os seus filhos. Sem a família. Ele não teria absolutamente nada.”
“Juliette saiu para a rua do Château-des-Rentiers perturbada. Durante os últimos meses ela tinha tido este sentimento inúmeras vezes.Ninguém compreendia a sua reacção à traição de Olivier, às suas mentiras, às agressões de V. O seu comportamento era incompreensível. Ela sentia-se humilhada pela compaixão dos outros. Sentiu as lágrimas humedecerem-lhe os olhos e, simultaneamente, a revolta a invadi-la. Porque as pessoas têm uma ideia muito precisa de como uma mulher traída se deve comportar, do que pode ou não pode suportar, do que ela pode ou não pode aceitar, e o consenso era, em nome da dignidade das mulheres, em nome da sua integridade, que ela tem o dever se mostrar intransigente, que deve preferir a solidão gloriosa a um amor imperfeito. Juliette , ela, lutou pelo seu direito ao seu amor imperfeito, ao seu amor conjugal, ao seu amor de merda como um dia disse V. Mesmo sabendo que na escala dos amores o seu se situava em baixo, mesmo em baixo, quase rente ao chão.”

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