Kisomba. É a dança do momento. Surpreendem-me estas tendências. Como se kisomba fosse uma descoberta recente.
Quando em 2002 fui colocada na Escola Mário Sá Carneiro em Camarate, não fazia ideia da experiência multicultural em que estava a mergulhar. Segui o instinto para encontrar a escola. “Hum… deve ser isto – um amontoado de pre-fabricados”! Habituei-me a ser a mais nova das professoras. Na altura tinha o cabelo muito comprido e chegava de férias. Os alunos chamavam-me de Pocahontas (bem diferente de Cruela Pousinha com que me designariam os alunos de uma escola do centro de Lisboa, uns anos mais tarde – antes Cruela e com resultados, do que boazinha sem eles 🙂 ).
Foi em Camarate que ouvi e dancei kisomba pela primeira vez. Ou tarrachinha. Foi em Camarate que percebi que não sabia nada sobre África ou sobre a mãe preta. Foi em Camarate que deixei de ter medo dos bairros. Que passei a dizer preto em vez de negro. Que me senti protegida como raras vezes me sinto no centro de Lisboa. Quando numa das turmas de 9º ano concluí o sistema digestivo, um aluno colocou o dedo no ar e perguntou ” – Professora agora que já estudámos a digestão nos brancos quando é que aprendemos a dos pretos?” E eu olhei para ele e vi aqueles olhos grandes e brilhantes como só os pretos têm. Justificou-se. “Todas as ilustrações do livros são referentes a meninos brancos!” Foi em Camarate que conheci uma Lisboa diferente. Como se fossem dois mundos intocáveis em que uns e outros não se misturam. Foi em Camarate que aprendi que o respeito se merece, não se impõe. Que a linguagem da violência e da ameaça eles conhecem melhor do que eu. Que a única forma de entrar no mundo deles é estabelecer limites por via dos afectos. Foi em Camarate que descobri o valor da confiança. Negociámos tudo. Mas conseguimos chegar ao fim. Rimo-nos juntos. Aprendi a imitar-lhes o gestos. A forma de falar. E foram muitos os stand-up comedy que protagonizei quando os quis corrigir com humor. Foi em Camarate que implementei a caixinha das dúvidas e desabafos. Que comecei, mesmo sem ter consciência, a realizar trabalho no domínio da educação sexual. Quando no final do ano lhes disse que teria de ir para outra escola recebi deles um mundo de afectos. De presentes feitos por eles que ainda hoje guardo. Nessa altura ainda não existia facebook. Perdi-lhes o rasto.
No ano seguinte mais um bairro. Chelas – Escola Afonso Domingues. CEFs. Para os leigos (como eu era), cursos de educação e formação para alunos com retenções multiplas e com elevado risco de abandono escolar. Em Chelas foi diferente. Não estava só a trabalhar com alunos de bairro. Estava a trabalhar com alunos com percurso de delinquência, na maior parte dos casos sem famílias que os enquadrassem. A generalidade destes alunos está habituada a que toda a gente lhes dite ordens, mas que ninguém lhes dê confiança. Eu gosto pouco de dizer a mesma coisa mais do que uma vez e neste contexto o “porta-te bem” pode assumir contornos disciplinares graves. Aprendi que estes alunos valorizam que lhes seja dada confiança. E da minha experiência não nos desiludem. Como sempre gostei de dar aulas diferentes, um dia disse-lhes que iriamos ter uma aula na escadaria exterior. Estava um dia bonito. Estabelecemos as regras. Foram exemplares. Ser professor é, também, um acto de gestão. Negociar. Negociar. Negociar. Levar estes alunos a apresentarem o resultado do seu trabalho na exposição do final de ano foi surpreendente. Para mim. E para eles.
Kisomba foi sempre o nosso hino. E os pretos têm este ritmo no sangue. Como ninguém. E, acreditem, respeitam como poucos!