Associo mendigos às cidades, nunca às aldeias ou pequenas vilas. Na cidade assumimos um anonimato que nos remete para a indiferença… Estamos, verdadeiramente, por nossa conta e risco. Recordo-me dos dias em que um homem escolheu a entrada do meu prédio para passar as noites. Passei por ele uma única vez, porque normalmente usava o acesso da garagem. Foi constrangedor. Um homem pouco mais velho do que eu. Ainda sem traços da dureza das ruas – soube depois que tinha perdido o emprego – enrolado em posição fetal, dentro de um saco cama azul. Houve um verdadeiro movimento dos condóminos para encontrar uma solução mais digna para o senhor. Quero acreditar que tenha sido isso… porque a verdade é que ninguém quer ter um mendigo à porta. Dificilmente vou esquecer esse fim de tarde. Era noite. Estava frio… um daqueles dias gelados de Janeiro. Trocámos um olhar. E nesse segundo de olhar senti vergonha. Senti vergonha por vestir roupa de marca e quente. Senti vergonha de ter uma casa naquele prédio. Senti vergonha de pertencer a uma sociedade tão desigual. É dessa vergonha que fugimos quando viramos a cara, quando mudamos de passeio… É por isso que criamos a nossa bolha – a vida torna-se tão mais leve quando não tropeçamos na miséria. Acreditamos que quem vive nas ruas fez más escolhas… são vagabundos, drogados, alcoólicos, preguiçosos, mentirosos, ladrões,… Será?
Desde essa altura comecei a ter curiosidade por estas pessoas, pelas suas motivações e pelas suas histórias. Comecei a reparar nos mendigos de Lisboa e de outras cidades.
São muitos os sem abrigo de Lisboa. As histórias são diversas. Há cada vez mais jovens. Há cada vez mais histórias que não estão associadas ao consumo de álcool e outras drogas. Há o desemprego… Há muita vergonha. Na sexta feira um jovem de lábios gretados e mãos secas pelo frio pediu-me ajuda: qualquer coisa para comer, disse. Eu estava com tempo, à espera que me viessem buscar ao aeroporto. Perguntei-lhe a idade. 23 anos, respondeu-me. Vivo na rua, tenho uma filha com 2 anos. Porque é que vives na rua? Eu e minha namorada deixámos de poder pagar o quarto. Tivemos de entregar a menina a uma instituição. As lágrimas corriam-lhe pela face e mesmo sabendo que aquela poderia ser a maior das mentiras com o objectivo de me arrancar 1€ ou 2€, eu senti vontade de o ouvir – porque prefiro um pedido a um roubo. Sentou-se em frente a mim. Bebeu um galão quente. Agradeceu-me o facto de o ter olhado nos olhos… E sabem o que mais temem os sem-abrigo? Os jovens! Pasmem-se, que também eu fiquei sem palavra. Os jovens que saem à noite. É comum pegarem fogo aos pertences e ao acumulado de mantas e cartão (em que se enrolam estas pessoas) dos sem-abrigo. Fiquei chocada!
Nos Estados Unidos os mendigos estão por todo o lado, muitas vezes deitados nas saídas de ar quente do metro, ou junto das passadeiras, onde literalmente são espezinhados pelas multidões que passam. Nunca como nesse país conheci tal degradação humana. Em San Diego, na Califórnia, os mendigos acumulam-se num jardim em frente ao Gaslamp Quarter – o Quarteirão de bares e restaurantes fancy da cidade. São na sua maioria ex-marines – de porte atlético e não mais do que 30 anos – muitos parecem loucos. Têm os seus pertences em carrinhos de super-mercado e não é raro vê-los no banco de jardim a ler. Acumulam-se junto do talho, no supermercado, por volta das 19h. Pedem pacotes (oferta) de molho picante para os aquecer durante a noite.

Sem abrigo junto a passadeira. USA.

Sem-abrigo deitado na saída de ar quente. USA.
O metro de Paris é o refúgio underground dos sem-abrigo. E são tantos… Foi nesta cidade que vi pela primeira vez pessoas sem-abrigo com um cão. Normalmente têm um cão e um carro de supermercado. Não é comum vê-los sozinhos. Normalmente juntam-se – é possível que seja uma forma de defesa. Quis saber porque tinham um cão. Parece que os cães são dados por instituições de solidariedade. Se o sem-abrigo tem uma companhia e, sobretudo, se tem algo para cuidar, passa a ter um motivo para viver e não se sente (tão) sozinho. É bem verdade que os cães estão, na generalidade bem tratados.
Deixo-vos a história que mais me marcou para último. Passou-se em Washington, Novembro de 2011. O meu hotel era junto à Casa Branca. Nas traseiras existe um jardim. Um grupo de sem-abrigo decidiu montar um verdadeiro acampamento e estabeleceram-se como uma comunidade contra o capitalismo. Com algum receio decidi entrar. A curiosidade foi maior do que o medo de ficar sem a máquina fotográfica. Existia a biblioteca, o hospital, a cantina e outros quantos serviços comunitários. Quando estava a sair uma mulher agarrou-me o braço. Pediu-me para eu lhe tirar uma fotografia. Olhei para ela. Calças sujas e esfarrapadas. Um gorro na cabeça. Os dentes completamente cariados. Senti algum medo, mas tirei-lhe a fotografia. Pediu-me para ver – e ao ver começou a chorar. Disse-me:
-Eu já tive um cabelo bonito como o teu. Tive cancro. Perdi o cabelo. Deixei de poder trabalhar. Perdi o emprego. Perdi a casa. E agora estou aqui. Vivo na rua. Mas sabes uma coisa? Perdi tudo, mas venci o cancro e ganhei a vida. É por isso que sorrio!

Sem abrigo que me pediu para eu lhe tirar uma fotografia.
Fiquei de lágrimas nos olhos. E não… não lhe dei um abraço. Saí dali o mais depressa que pude. Como se quisesse fugir de mim. Porque tenho por garantidas tantas coisas… E para perder, basta ter!
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