Praxe. Uns dizem tratar-se de actos de humilhação. Outros justificam-na como uma forma de integração dos estudantes. O acidente do Meco – sim, para mim foi um triste acidente – colocou a descoberto todo um conjunto de códigos e práticas que, uma vez discutidas em praça pública, as tornam desprovidas de sentido – como se de actos bárbaros e primitivos se tratasse.
Coimbra. Cidade das Capas Negras. Foi a praxe que me levou a escolher a Universidade de Coimbra. Sim, foi a praxe! O poder usar o traje académico, a pasta com os selos das matrículas, a mesma que se usa durante todo o curso, a partir do momento em que se é pastrano (2º ano). Muitos utilizam a pasta que os seus pais usaram. Juntam os seus selos, aos selos das matrículas dos pais (os selos são os posters das queimas das fitas em pequeno formato).
Em Coimbra há um código da praxe. É-se caloiro. Os doutores – a partir da 2ª matricula – reconhecem-se pelo traje. Ser caloiro significa ser colocado em situações ridículas – de pijama a varrer as ruas da cidade, descalço na tentativa de encontrar os sapatos entre outros 100 pares, cantar músicas parvas,… significa, para qualquer pessoa que passe… ser humilhado. A verdade é que eu nunca me senti humilhada, porque os meus pares não eram os doutores, eram os outros caloiros! Estávamos todos metidos no mesmo “sarilho” e em Coimbra isso significa também “Estávamos todos a viver sozinhos aos 18 anos, sem televisão e em quartos, na generalidade pouco atraentes, para lá ficarmos muito tempo”. Recordo-me de ter medo dos veteranos (doutores com número de matrículas igual ou superior à duração do curso superior em que se está inscrito), do Concelho de Praxe. Em Coimbra os caloiros não podem andar na rua após o último toque da Cabra (A torre da Universidade de Coimbra) – ou seja, após a meia-noite. Caso sejam “apanhados” na Alta da Cidade – Universidade e também os bares e discotecas -, por uma trupe (grupo de doutores, trajados a rigor, com colher de pau gigante) correm risco de punição. A praxe permite sempre que o caloiro saia ileso: basta que responda correctamente a uma pergunta – daquelas que ninguém é capaz de responder! ou que tenha consigo uma telha (o código de praxe determina que não se pode praxar debaixo de telha), ou que esteja com um veterano. Caso não tenha nenhuma das protecções referidas, existe uma punição por incumprimento do código da praxe – estar na rua depois da meia noite. Pode “levar na unhas”, que basicamente significa colocar os dedos unidos, virados para cima, e sentir a colher de pau na unhas, ou lhe ser cortada uma mecha de cabelo (o meu terror). Em situações muito graves – desobediência, por exemplo, o caloiro pode ser levado a Concelho de Praxe, no qual pode ser determinado o corte (completo) do cabelo ou expulsão das insígnias da Praxe, ou seja, impossibilidade de usar traje ou pasta académica. Recordo-me de ver mechas de cabelos pelas ruas, quando de manhã me deslocava para as aulas. Não era mito, era mesmo verdade!
Para um caloiro, a primeira serenata na Sé Velha (abertura da queima das fitas) é um dos momentos altos da sua vida académica. Nessa noite a minha madrinha (em Coimbra a praxe é exercida respeitando o género, ou seja, raparigas praxam raparigas, rapazes praxam rapazes) traçou-me a capa – e eu senti-me uma estudante de Coimbra.
Segue-se o 2º ano. É-se pastrano. Pode-se praxar os caloiros. Praxar a minha caloira significou reproduzir o mesmo que me foi feito. Significou descer com ela a Sá-da-Bandeira, colocando-lhe latas atadas aos pés – o desfile chama-se latada, por isso mesmo! – fazer o baptismo com as águas do Mondego, com o penico da cor do curso, vesti-la de formiga, pintá-la,… mas significou também dar-lhe todos os meus cadernos, sebentas, apontamentos – à conta disso uma das minhas sebentas tornou-se célebre no curso – o pior é que a capa que eu tinha desenhado referia “Sebenta de Mesquitologia” com caricaturas diversas do referido professor, cujo apelido era Mesquita. Apadrinhar um caloiro não se sente como uma oportunidade de humilhar outrém, na verdade sente-se como uma insígnia de protecção – sobretudo em Coimbra, em que estamos quase todos sozinhos e com a família distante.

De pastrano passamos a ter o grelo na pasta. 3º matricula. Com esta insígnia podemos colocar um nabo e/ou cenoura na pasta e fazer os caloiros morder, durante o desfile da latada. Cumpre a tradição que os nabos têm de ser roubados no mercado, nessa mesma manhã, antes do desfile – quer isto dizer que já roubei. Há quem tempere os ditos com malaguetas ou outras coisas que tais. Os caloiros lá vão provando… Até que no final do desfile resta apenas a rama (o grelo) que é lançado ao rio Mondego. Os grelados raramente têm os seus caloiros, os deveres de estudo não permitem grande tempo, mas têm o dever de controlar os excessos de praxe que os pastranos exercem sobre os seus caloiros. É, por isso, um sistema de hierárquias cujo objectivo é assegurar que a Praxe produz um efeito de integração e respeito pela tradição.
Na terceira queima fui fitada – ou seja, coloquei as fitas na minha pasta após queimar o grelo (uma fita azul em algodão). Em Coimbra existe um número de fitas fixo – 6. Uma para os pais, uma para o namorado/marido, as outras são para os amigos, família e professores – que partilham os escritos nas mesmas fitas. Quem não tiver namorado/marido deixa essa fita em branco. Há aliás outra tradição no que a namorados diz respeito. O namorado(a) rasga a capa negra atrás. O suficiente para se notar. Se a relação terminar, o corte é cozido com a cor do curso. Se existir uma nova relação, o corte é feito ao lado… e assim sucessivamente. O cortejo da queima é feito em carro decorado com flores de papel. Todos contribuimos para a sua decoração e recheio (álcool se bem me entendem). Agitam-se as fitas. Toda a cidade sai à rua. O destino é, mais uma vez a Baixa e o seu Mondego.
Na última queima é-se cartolado. De cartola e bengala desce-se a Sá-da-Bandeira à frente do carro. A partir daqui, quem não termina no curso, coloca uma fita negra na sua cartola, a cada ano a mais que passa na Universidade.
A última serenata nas escadas da Sé Velha fez-me reviver todos os momentos vividos – a maior parte deles estiveram relacionados com insígnias da Praxe. “Coimbra tem mais encanto na hora da despedida” diz o fado. É preciso viver Coimbra, viver a Praxe de Coimbra, para sentir isso!

Esta é a primeira vez que escrevo (e que falo) sobre a Praxe de Coimbra. Sempre achei que só faz sentido discutir Praxe com as pessoas que a viveram, para os outros nada do que escrevi faz sentido. Muito honestamente sempre achei que fora de Coimbra a Praxe é desprovida de conteúdo ou referência – Mas isso sou eu, mera opinião… Talvez exista a mesma consciência de Praxe em Universidades que tenham os seus estudantes deslocados como Évora, Trás os Montes, Covilhã,… Mas Lisboa ou Porto… Nessas cidades acho que não existe um verdadeiro Espírito de Praxe.
O acidente do Meco. Na minha opinião todos os 7 são vitimas. Nenhum era caloiro. Têm existido tantas imagens de práticas de praxe sobre caloiros. Os jovens que morreram eram já “doutores”. Eles também praxaram. Como será que eram enquanto “doutores”? Onde estão os caloiros por eles praxados? Queriam ser “dux”. Queriam ter o cargo máximo da hierarquia! Para isso foram passar um fim de semana ao Meco… Não foram obrigados… mas sim motivados pela ideia de poder hierárquico na Praxe! Essa Praxe que me é desconhecida…
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